Depois da descoberta de que três vinícolas gaúchas vinham contratando empresas que usavam trabalho escravo, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves resolveu soltar uma nota de posicionamento. Claro, diz que suas associadas são inocentes e que jamais teriam se associado à prestadora de serviço se soubessem o que estava acontecendo. Se parasse por aqui, a nota teria cumprido seu papel (duvidoso) de defender as associadas e tentar empurrar toda a culpa para quem foi pego fazendo o serviço sujo.
Lembrando: estamos falando de uma operação que flagrou gente sendo forçada a trabalhar 15 horas por dia, sem pausa, comendo alimentos estragados e superfaturados (para criar dívidas eternas) e que, se reclamasse, levava choques elétricos e borrifadas com spray de pimenta. As empresas que compravam ali (sempre bom dizer seus nomes: Aurora, Salton e Garibaldi) não tinham culpa? No mínimo foram negligentes.
Trabalho escravo e “assistencialismo”
Mas a nota da associação vai bem mais longe e coloca a culpa de tudo no sistema de proteção social do país. De uma maneira que nem sequer é compreensível, diz que esse tipo de situação (o trabalho escravo) deriva da falta de mão de obra para as vinícolas e outros setores. E que falta mão de obra porque as pessoas estão sendo mantidas por “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Primeiro, claro, é preciso ressaltar que, não bastasse a estupidez diplomática de se dizer algo assim quando estamos vendo gente torturada por empregadores, não há lógica alguma na afirmação. O que quer dizer isso? Que não havia trabalhadores interessados em aceitar os salários oferecidos e que, por isso, foi preciso escravizá-los? Que se não fosse à força ninguém trabalharia pelo que eles pagam?
Desde a criação do Bolsa-Família há gente tentando empurrar essa história de que, por receber um auxílio mínimo governamental, os pobres não iriam mais querer trabalhar. Como se o dinheiro (mesmo agora, com R$ 600) fosse suficiente para bancar alguém, quem dirá uma família. E como se as pessoas não quisessem ter uma vida um pouco melhor.
Agora, ter a pachorra de dizer que isso leva ao trabalho escravo foi uma inovação e tanto do pessoal de Bento Gonçalves.
Detalhe: a maior parte dos trabalhadores escravizados vinha da Bahia, segundo se diz, com promessas de salários de R$ 3 mil ou mais. O que, é claro, não se concretizava. Ou seja: a associação de empresários gaúcha está dizendo que essas pessoas largaram sua vida na Bahia e seu auxílio governamental em troca de atravessar o país para ter um emprego que, imaginavam, seria decente – mas ao mesmo tempo, diz que ninguém quer trabalhar.
Seja lá o que os empresários tenham pensado, a defesa de que a proteção social aos mais pobres leva a trabalho escravo é ilógica, desumana e cruel. E essa associação, que fique claro, muito provavelmente é capitaneada justamente pelo setor vinícola, o mais forte da região.
Veja a nota completa:
“Na condição de entidade fomentadora e defensora do desenvolvimento sustentável, ético e responsável dos negócios e empreendimentos econômicos, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves vem acompanhando com atenção o andamento das investigações acerca de denúncias de práticas análogas à escravidão no município. É necessário que as autoridades competentes cumpram seu papel fiscalizador e punitivo para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis.
Da mesma forma, é fundamental resguardar a idoneidade do setor vinícola, importantíssima força econômica de toda microrregião. É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação. São, todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados. A elas, o CIC-BG reforça seu apoio e coloca-se à disposição para contribuir com a busca por soluções de melhoria na contratação do trabalho temporário e terceirizado.
Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.
É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável.“
Fonte: Rogerio Galindo / Caixa Zero / Plural